Afisa-PR

"A agência do sim"

Reportagem do The Intercept conta os bastidores da regulamentação de agrotóxicos nos EUA  

 

 

O The Intercept publicou uma reportagem sobre os bastidores da regulamentação de agrotóxicos pela Agência de Proteção Ambiental (EPA, na sigla em inglês, U.S. Environmental Protection Agency).  A EPA é uma agência federal reguladora do governo dos EUA encarregada, entre outras atividades, "de proteger a saúde humana e o meio ambiente".

A reportagem conta que uma indústria "muito mais poderosa e com melhores recursos do que a EPA" (responsável por regulá-la) "enganou, intimidou e persuadiu" para o "uso de pesquisa científica imprecisa em detrimento da saúde pública" — citando alguns agrotóxicos, tais como os à base dos princípios ativos DDT e aldrin e dieldrin  (princípios ativos proibidos no Brasil desde 1985), clorpirifós1paraquate (p. a. proibido no Brasil desde setembro de 2020), agrotóxicos da classe dos neonicotinóides (entre eles o p. a. tiametoxam que é proibido na União Europeia) e glifosato3.

A reportagem conta que a indústria de agrotóxicos nos EUA "influencia a pesquisa científica que define os níveis seguros de exposição aos agrotóxicos" e que isto é "apenas uma das muitas ferramentas" que ela "tem usado com sucesso para aumentar e manter" o consumo de agrotóxicos, mesmo quando eles sejam potencialmente nocivos à saúde das pessoas e o meio ambiente.

 

 

A reportagem realizou "entrevistas com mais de duas dezenas" de cientistas da regulamentação de agrotóxicos — incluindo quatorze deles que trabalharam no Escritório de Programas de Agrotóxicos (OPP, na sigla em inglês, Office of Pesticide Programs) da EPA — que descreveram como "muitas vezes a EPA não é capaz de suportar as intensas pressões das poderosas indústrias de agrotóxicos, que a cada ano gastam dezenas de milhões de dólares em lobby e que empregam muitos ex-cientistas" (revolving door) que também trabalharam para a EPA. Segundo a reportagem, essa "enorme influência corporativa enfraqueceu e, em alguns casos, cancelou significativamente a regulamentação de agrotóxicos" nos EUA e deixou os estadunidenses 'expostos a níveis perigosos" que não são permitidos em muitos outros países.

A reportagem cita certos princípios ativos presentes nas formulações comerciais de alguns agrotóxicos, cuja regulamentação da EPA "falhou em proteger a população dos danos" que eles causam. Menciona ainda que relatórios da própria EPA, com "alarmantes descobertas", trouxeram "à luz vários casos" nos quais a pesquisa científica foi negligenciada com "consequências diretas para a saúde das pessoas". Entre as "alarmantes descobertas" estão relatórios que "que nunca vieram a luz do dia" sobre a:

 

1º) ligação dos agrotóxicos à base do p. a. glifosato com o câncer;

2º) não consideração das evidências de que os agrotóxicos da classe dos neonicotinoides causam danos para o cérebro; (E ao esperma.)

3º) recusa em investigar evidências de que um outro princípio ativo presente na formulação comercial dos agrotóxicos à base do p. a. glifosato tem potencial de causar câncer;

4º) rejeição da pesquisa científica que mostra que os amplamente usados agrotóxicos à base do p. a. malationa4 causam câncer; e

5º) dispensa por parte da EPA, a pedido das indústrias de agrotóxicos, da "maioria dos testes científicos de toxicidade".

 

Os cientistas entrevistados pela reportagem do The Intercept (que identificaram as falhas acima) "descreveram uma imensa pressão no interior" da EPA "para ignorar as falhas que encontraram". E vários deles relataram "que enfrentariam retaliações caso chamassem a atenção para os riscos dos agrotóxicos". "Caso mencione uma verdade inconveniente, você é descartado para qualquer tipo de trabalho necessário para se obter uma promoção", disse um toxicologista que trabalhava para o OPP. "É uma regra não escrita que, para obter promoções, todos os agrotóxicos precisam ser autorizados", descreve a reportagem.

Um dos cientistas relatou à reportagem que "às vezes, a urgência para que os agrotóxicos sejam autorizados vem dos membros" do Congresso dos EUA e que, no âmbito do OPP, sua "equipe se refere a esses casos como 'pacotes de sim'". (E que também "encontrou este termo em várias ocasiões, nas quais congressistas procuraram — 'Por que isso demora tanto?" — a EPA em nome das indústrias cujos agrotóxicos eram avaliados".)

 

 

Como a legislação estadunidense exige estudos científicos para a autorização de um agrotóxico, a indústria pode fornecer seus próprios estudos porém, segundo a reportagem, o governo "muitas vezes não tem recursos suficientes para avaliá-los" durante o processo de autorização.

A reportagem conta que mesmo quando um toxicologista da EPA "detecta um problema" com os estudos científicos dos agrotóxicos, às vezes "é impossível corrigi-lo". Em 2018 um toxicologista da EPA revisou a toxicidade dos agrotóxicos à base do p. a. ácido pelargônico4. Os estudos científicos sobre estes agrotóxicos "haviam concluído que ele não representava nenhuma ameaça à saúde das pessoas"; no entanto, esse toxicologista "decidiu pesquisar os dados brutos arquivados" e descobriu que vários animais de laboratório desenvolveram leucemia e linfoma depois que sofreram exposição dérmica aos agrotóxicos à base do p. a. ácido pelargônico. "Os estudos científicos concluíram que não havia toxicidade crônica, mas quando olhei para o estudo real, era claramente o oposto", disse o toxicologista à reportagem do The Intercept. O "próximo passo lógico", presumiu o toxicologista, "era solicitar" que o Comitê de Revisão de Avaliação do Câncer da EPA (CARC, na sigla em inglês, Cancer Assessment Review Committee) reavaliasse os agrotóxicos à base do p. a. ácido pelargônico. "E quando o funcionário da EPA falou com vários colegas e gerentes individualmente sobre essa situação e lhes mostrou os estudos, cada um concordou sem hesitação que havia motivo para preocupação e que o caso deveria ser reavaliado" pelo comitê de câncer.

Porém, segundo a reportagem, "um grupo de gerentes" do escritório de agrotóxicos da EPA "discordou e foi especialmente resistente" à ideia da reavaliação pelo comitê de câncer. Por quê? O toxicologista contou à reportagem que "poderia ser devido ao papel do p. a. ácido pelargônico, que, além de ser um agrotóxico herbicida por si só" também é um dos "componentes da formulação comercial dos agrotóxicos à base do p. a. glifosato.  

 

 

"Quando finalmente mencionei a conexão com o i. a. glifosato, repentinamente, todos recuaram", disse o toxicologista envolvido à reportagem do The Intercept. Ele temia que, como havia estudos científicos indicando que "juntos, tanto o i. a. ácido pelargônico quanto o p. a. glifosato, poderiam causar leucemias e linfomas", eles "poderiam ser particularmente perigosos" para a saúde das pessoas. A reportagem conta que os gerentes do escritório de agrotóxicos da EPA "temiam que o ácido pelargônico pudesse atuar como um 'co-carcinógeno', facilitando a absorção do glifosato pela pele das pessoas expostas".

Segundo a reportagem, é possível que a revisão do comitê de câncer da EPA, caso feita, ajudasse a explicar os anos gastos em pesquisa científica que mostram que as formulações comerciais dos agrotóxicos à base do p. a. glifosato "são mas propensos a causar desregulação do ciclo celular, uma marca registrada do câncer", visto que o p. a. glifosato sozinho seria incapaz de desregular o ciclo celular.

 

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Com monografia C20 – Clorpirifós autorizada no Brasil pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa).

2 Com monografia T48 – Tiametoxam autorizada no Brasil pela Anvisa.

3 Com monografia G01 – Glifosato autorizada no Brasil pela Anvisa.

4 Com monografia M02 - Malationa autorizada no Brasil pela Anvisa. 

Sem monografia autorizada no Brasil pela Anvisa.

 

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